Conforme levantamento do Ministério Público do Trabalho, as denúncias de trabalho doméstico análogo à escravidão aumentaram 123% desde o lançamento de “A Mulher da Casa Abandonada”, podcast do jornal Folha de S. Paulo apresentado pelo jornalista Chico Felitti.
Os dados apontam que a média mensal passou de 7 para 16 denúncias após o dia 8 de junho, data em que foi divulgada a história de Margarida Bonetti, brasileira que mora em uma mansão abandonada no bairro de Higienópolis, São Paulo, acusada de manter uma empregada em condições análogas à escravidão durante 20 anos nos EUA.
Apesar da divulgação de casos de resgate influenciarem no combate à escravidão contemporânea, esse tipo de crime é difícil de ser combatido porque, na maioria das vezes, ele ocorre dentro de casa, gerando diversos obstáculos para o flagrante.
Diante desse cenário, compreenda o que é um trabalho análogo à escravidão e saiba o que fazer para denunciar esse tipo de crime.
O que é um trabalho análogo à escravidão?
O trabalho realizado em condição análoga à de escravo é aquele que resulta das seguintes situações:
- submissão de trabalhador a trabalhos forçados;
- submissão de trabalhador a jornada exaustiva;
- sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho;
- restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho;
- vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
- posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Vale destacar que o trabalho análogo à escravidão pode ser resultado de uma ou mais das situação destacadas acima.
Por que se utiliza a expressão “trabalho análogo à escravidão”?
Esse termo é utilizado pois o trabalho escravo foi oficialmente abolido em 13 de maio de 1888. Desde então, o Estado passou a considerar ilegal um ser humano ser “dono” de outro.
Logo, toda relação de trabalho que remete às condições vividas na época da escravidão são compreendidas como semelhantes ao trabalho escravo, tanto do ponto de vista de cercear a liberdade, quanto de suprimir a dignidade do trabalhador.
Manter alguém trabalhando de maneira análoga ao escravo é crime?
Sim. Desde os anos 1940, o Código Penal prevê, em seu art. 140, prisão de 2 a 8 anos para o crime e dá as seguintes providências:
- Art. 149 – Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.” (NR).
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Como identificar casos de trabalho análogo à escravidão?
Para identificar se alguém está sendo mantido em uma relação de trabalho análoga à escravidão, é preciso compreender as quatro situações que podem ser consideradas como escravidão contemporânea previstas em lei:
- trabalho forçado;
- servidão por dívida;
- condições degradantes;
- jornada exaustiva.
Trabalho forçado
Entende-se por trabalho forçado aquele que gera ameaças, agressões físicas, restrição de uso de meios de transporte e retenção de documentos, como passaportes de trabalhadores imigrantes, com o intuito de impedir ou dificultar a saída do funcionário do local de trabalho.
Servidão por dívidas
Nesses casos, o empregador leva o trabalhador a constituir dívidas de forma fraudulenta ou irregular, e dificulta que o funcionário consiga quitar esse débito que teria contraído.
Condições degradantes
Nessa situação, os funcionários têm seus direitos básicos negados ou negligenciados.
Dessa maneira, é muito comum encontrar casos em que o trabalhador é privado de uma alimentação digna, de acesso à água potável, de um alojamento com a mínima qualidade e conforto, da garantia de saúde e segurança do trabalho, de repouso e, até mesmo, pagamento de remuneração.
Jornada exaustiva
A jornada exaustiva corresponde a uma longa duração do tempo trabalhado e é tão intensa que pode levar ao desgaste e ao adoecimento do funcionário.
Como fazer uma denúncia de trabalho análogo à escravidão?
Ao desconfiar de que alguém está sendo submetido a trabalho análogo à escravidão, é preciso denunciar a situação.
Isso pode ser feito por meio do formulário do Sistema Ipê, presencialmente nas unidades do Ministério Público do Trabalho ou em Superintendências Regionais do Trabalho ou por telefone, ligando nas unidades dos órgãos supracitados ou no Disque 100.
Vale destacar que a denúncia pode ser feita de forma anônima, mas é importante deixar ao menos um telefone de contato para garantir mais eficiência na ação.
Ademais, os dados do denunciante são sigilosos e não podem ser divulgados, assim como a própria existência da denúncia e seu conteúdo.
O que é o Sistema Ipê?
O Sistema Ipê foi desenvolvido como forma de coletar, concentrar e tratar das denúncias de trabalho em condições análogas às de escravo no território brasileiro.
Dessa maneira, as denúncias poderão ser atendidas de forma mais rápida, sendo priorizadas aquelas que possuem um indicador de maior gravidade.
Além disso, a ferramenta é acessível aos migrantes, já que o sistema está disponível em mais 3 idiomas além do português. Que são:
- inglês;
- espanhol;
- francês.
Imagem em destaque: Freepik (Rochak Shukla)