Enfrentar uma emergência médica já é uma situação de extrema angústia, especialmente quando envolve crianças ou tratamentos complexos como o oncológico. O cenário se torna ainda mais desolador quando, ao chegar ao hospital, a família se depara com a recusa do convênio médico sob a justificativa de que o contrato ainda está no “período de carência”.
No entanto, o entendimento consolidado dos tribunais brasileiros é claro: a vida não pode esperar. Uma recente decisão da 33ª Vara Cível de São Paulo reforçou esse direito, condenando uma operadora a indenizar um paciente que teve sua internação em UTI negada. Este caso ilustra perfeitamente como o consumidor pode e deve lutar contra a negativa de urgência na carência.
Entendendo a negativa de urgência na carência
Muitos consumidores, ao contratarem um convênio, são informados sobre os prazos de carência — o tempo que devem aguardar para utilizar determinados serviços. Geralmente, fala-se em 180 dias para internações. Contudo, essa regra possui uma exceção vital que muitas operadoras ignoram propositalmente: os casos de urgência e emergência.
A legislação brasileira, especificamente a Lei nº 9.656/98, estabelece que o prazo máximo de carência para casos de urgência (risco de vida ou lesão irreparável) e emergência é de apenas 24 horas após a contratação.
Quando um plano de saúde nega atendimento nessas circunstâncias, alegando que o cliente ainda não cumpriu os seis meses de contrato, ele está cometendo uma prática abusiva. No caso analisado, a operadora recusou a cobertura de um paciente de 11 anos, portador de câncer, que necessitava de UTI imediata devido a um quadro de febre e dificuldade respiratória. Essa conduta, infelizmente comum, coloca o equilíbrio financeiro da empresa acima da vida do beneficiário.
O que diz a lei e os tribunais superiores
Para combater abusos, o Judiciário criou entendimentos sumulados (regras que devem ser seguidas pelos juízes) que protegem o consumidor. Na decisão que estamos analisando, o magistrado citou expressamente a Súmula 597 do STJ, que considera abusiva a cláusula que prevê carência para emergências se o prazo de 24 horas da contratação já tiver sido ultrapassado.
Além disso, a Súmula 103 do Tribunal de Justiça de São Paulo reforça que é ilegal negar cobertura em atendimento de urgência a pretexto de carência em curso.

A importância do prazo de 24 horas
É fundamental que o consumidor entenda a cronologia de seus direitos:
- Até 24 horas da contratação: O plano pode negar atendimentos, pois o contrato é muito recente.
- Após 24 horas da contratação: A cobertura para urgência e emergência torna-se obrigatória.
No caso em questão, o contrato teve início em dezembro de 2023 e o atendimento foi solicitado em maio de 2024. Ou seja, haviam se passado cinco meses — tempo mais do que suficiente para superar a carência de 24 horas para emergências, tornando a negativa da Unimed e sua seguradora injustificável.
Estudo de caso: o drama de um paciente oncológico
Para ilustrar como esse direito se aplica na prática, analisamos o processo de um paciente menor de idade, portador de Sarcoma de Ewing (um tipo de câncer ósseo). Durante o tratamento, a criança apresentou neutropenia febril — uma complicação grave que exigia internação imediata em UTI e antibióticos na veia para evitar risco de morte.
A família, agindo corretamente, levou o paciente a um hospital credenciado e solicitou a autorização do convênio. A operadora negou, alegando que o plano estava em carência até o final do mês de maio. Diante da recusa e da gravidade do quadro, a mãe foi forçada a buscar atendimento na rede pública (Santa Casa), expondo a criança a um deslocamento e espera que poderiam ter sido fatais.
A decisão judicial e a “regra das 12 horas”
Ao analisar o caso, o juiz foi taxativo ao reconhecer a urgência. O pedido médico de UTI e o estado crítico da criança (febre alta e dificuldade respiratória) comprovavam que não se tratava de um procedimento eletivo, mas de uma necessidade de sobrevivência.

Um ponto crucial da decisão envolve a extensão da cobertura. O magistrado explicou que, mesmo em planos com carência de internação em aberto, a operadora é obrigada a custear integralmente o atendimento de emergência nas primeiras 12 horas.
Caso a internação precise continuar após essas 12 horas e o plano tenha restrições contratuais válidas (como segmentação apenas ambulatorial ou carência de internação ainda vigente), a obrigação da operadora muda: ela deve garantir o transporte seguro do paciente para uma unidade da rede pública ou privada que possa continuar o tratamento, arcando com os custos até que essa transferência segura ocorra.
No entanto, a operadora falhou duplamente: negou as primeiras 12 horas e não providenciou a remoção adequada, abandonando o paciente à própria sorte.
Reparação por danos morais
Além de garantir o direito à saúde, o Judiciário tem punido as operadoras com indenizações por danos morais. O objetivo é duplo: compensar o sofrimento do paciente e desestimular a empresa de repetir a conduta.
Neste caso, o tribunal entendeu que a negativa ultrapassou o mero aborrecimento. A situação causou aflição psicológica intensa, pois a família, mesmo pagando as mensalidades em dia, viu-se desamparada no momento de maior vulnerabilidade.
O juiz aplicou o Código de Defesa do Consumidor, que estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor. Isso significa que a empresa responde pelos danos causados independentemente de ter agido com culpa ou dolo. A condenação foi fixada em R$ 4.554,00 a título de danos morais, valor considerado proporcional para sancionar a falha no serviço.
O que fazer se o plano negar atendimento na carência?
Se você ou um familiar estiver enfrentando uma situação semelhante, é crucial agir rápido. A decisão judicial aqui analisada serve como um precedente importante, mas cada caso possui suas particularidades.

Aqui estão os passos recomendados:
- Exija a negativa por escrito: A operadora é obrigada a fornecer um documento explicando o motivo da recusa. Se não derem, anote o número do protocolo de atendimento telefônico.
- Tenha um laudo médico detalhado: O médico deve especificar claramente que se trata de uma situação de urgência ou emergência, com risco de morte ou lesão grave, e que a internação imediata é imprescindível. No caso citado, o receituário médico foi a prova principal da urgência.
- Procure apoio jurídico especializado: Advogados especialistas em direito à saúde podem ingressar com um pedido de liminar (tutela de urgência). Essas decisões costumam sair em poucas horas ou dias, obrigando o plano a custear o tratamento imediatamente, antes mesmo do fim do processo.
- Guarde comprovantes de despesas: Se você pagar pelo tratamento particular ou gastar com medicamentos devido à negativa, guarde todas as notas fiscais para pedir o reembolso posteriormente.
Conclusão
A decisão da 33ª Vara Cível de São Paulo reafirma um princípio básico: contratos administrativos não podem se sobrepor ao direito à vida. A cobertura obrigatória de urgência após 24 horas de contratação é uma garantia legal que protege o consumidor de ficar desamparado quando mais precisa.
Embora a operadora tenha tentado utilizar cláusulas de carência para se eximir da responsabilidade, o Judiciário corrigiu a injustiça, lembrando que a saúde não é apenas um negócio, mas um direito fundamental. Consumidores informados e bem assessorados juridicamente têm plenas condições de reverter negativas abusivas e garantir o melhor tratamento possível.
Dados da decisão analisada:
- Data da sentença: 30/10/2025
- Número do processo: 1103322-73.2024.8.26.0100
- Órgão julgador: 33ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo