Imagine a frustração de chegar em casa, tentar realizar tarefas básicas de higiene ou alimentação e descobrir que não há uma gota d’água nas torneiras. Agora, imagine que todas as suas contas estão pagas e, mesmo assim, o fornecimento permanece interrompido por dias a fio devido a um erro da própria empresa. Infelizmente, o corte de água indevido após pagamento é uma realidade que afeta muitos brasileiros, gerando transtornos que vão muito além do mero aborrecimento.
Recentemente, um caso julgado no Rio Grande do Norte trouxe à tona essa questão, reafirmando que o consumidor não pode ser penalizado pela ineficiência das concessionárias de serviço público. Neste artigo, vamos analisar como o Judiciário tem tratado essas situações, usando um exemplo prático para ilustrar seus direitos e explicar o que fazer caso você enfrente esse problema.
O direito ao serviço essencial e a responsabilidade das concessionárias
A água é considerada um bem essencial à vida e à dignidade humana. Por isso, a legislação brasileira, através do Código de Defesa do Consumidor (CDC), estabelece regras rígidas para a interrupção desse serviço. Embora o corte por inadimplência seja permitido em situações específicas e com aviso prévio, ele se torna ilegal imediatamente após a regularização do débito ou quando decorre de falha técnica da empresa.
Quando falamos de uma relação de consumo, a responsabilidade da empresa fornecedora — seja ela pública ou privada — é objetiva. Isso significa que a concessionária de água responde pelos danos causados ao consumidor independentemente de culpa, bastando provar o dano e a relação com o serviço prestado (ou mal prestado).
No cenário jurídico atual, entende-se que privar uma família de água potável por erro injustificável configura uma grave falha na prestação do serviço. Não se trata apenas de um descumprimento contratual, mas de uma ofensa à dignidade, o que abre portas para a reparação financeira.
Estudo de caso: 13 dias sem água por causa de uma “cápsula”
Para ilustrar como a Justiça protege o consumidor nestes casos, analisamos uma decisão recente proferida pela 1ª Vara Cível da Comarca de Parnamirim. A situação envolveu uma consumidora e a CAERN (Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte).
A cronologia do problema
O caso começou com um corte legítimo por inadimplência em fevereiro. A consumidora, contudo, regularizou seus débitos dias depois. O problema real surgiu meses à frente, em maio. Após uma fiscalização, a empresa alegou irregularidades e cortou o fornecimento novamente, aplicando multa.
A consumidora provou que havia pago todos os débitos exigidos no mesmo dia da fiscalização. Teoricamente, o serviço deveria ter sido restabelecido de imediato. No entanto, o que se seguiu foi uma via sacra de reclamações.
Apesar de solicitar a religação e informar a falta de água reiteradamente, a consumidora permaneceu desabastecida. A empresa, em seus registros internos, alegava que o ramal estava “normal” e com abastecimento regular. Somente após a segunda reclamação formal e uma nova visita técnica — 13 dias após o corte — a equipe da concessionária descobriu o problema real: havia uma “cápsula” obstruindo a passagem da água, um dispositivo deixado pela própria equipe da empresa em uma intervenção anterior.

A decisão judicial
Ao analisar o processo, o Juízo foi taxativo. Ficou comprovado que a consumidora não tinha débitos pendentes que justificassem a falta de água naquele período. A interrupção prolongada ocorreu exclusivamente por imperícia da concessionária, que demorou a identificar a obstrução física que seus próprios funcionários haviam causado.
A sentença destacou que a privação de água por 13 dias ultrapassa o “mero aborrecimento”. O dano, neste caso, é considerado in re ipsa, ou seja, presumido. Não é necessário que a vítima prove que sofreu humilhação ou dor psicológica; o simples fato de ficar sem um serviço essencial por tanto tempo, por erro da empresa, já configura o dever de indenizar.
O resultado foi a condenação da empresa ao pagamento de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a título de dano moral, valor considerado proporcional para compensar o sofrimento da consumidora e punir a desídia da empresa.
Por que o corte de água indevido após pagamento gera indenização?
A decisão judicial baseou-se em pilares fundamentais do Direito do Consumidor que servem de alerta para todas as concessionárias:
- Inversão do ônus da prova: Cabe à empresa provar que o serviço foi prestado corretamente. Se o consumidor diz que está sem água e a empresa não consegue provar tecnicamente o contrário ou a culpa do consumidor, a empresa é responsabilizada.
- Teoria do Risco do Empreendimento: Quem lucra com a prestação de um serviço deve arcar com os riscos dele. Se a equipe técnica esqueceu uma peça bloqueando o cano, a culpa não pode ser transferida para o cliente.
- Essencialidade do serviço: Diferente de um serviço de internet ou TV a cabo, a falta de água afeta a saúde e a higiene. A tolerância do Judiciário para erros nesse setor é praticamente zero.
A responsabilidade objetiva prevista no artigo 14 do CDC é clara: o fornecedor de serviços responde pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços. No caso analisado, a “cápsula” esquecida foi o defeito que gerou o dever de indenizar.
O que fazer se você estiver nessa situação?
Se você está enfrentando um corte de água indevido após pagamento, ou se o fornecimento não foi restabelecido no prazo legal após a quitação dos débitos (geralmente 24 a 48 horas, dependendo da legislação local), é crucial agir de forma estratégica para garantir seus direitos.
1. Reúna provas documentais
O primeiro passo é ter a prova do pagamento em mãos. Guarde os comprovantes de pagamento das faturas que originaram o corte e das taxas de religação, se houver.

2. Registre todas as reclamações
Entre em contato com a concessionária e anote todos os números de protocolo. Anote também a data, a hora e o nome do atendente. No caso que analisamos, os registros das ordens de serviço e as reclamações reiteradas da consumidora foram fundamentais para provar a negligência da empresa.
3. Documente a falta de água
Se possível, tire fotos ou faça vídeos que demonstrem a falta de água (torneiras secas, baldes, etc.). Se houver visitas técnicas, peça uma cópia da ordem de serviço ou fotografe o documento que o técnico preencher.
4. Denuncie aos órgãos de proteção
Registre uma reclamação no Procon de sua cidade ou no site Consumidor.gov.br. Isso gera uma prova oficial da tentativa de solução administrativa.
5. Busque auxílio jurídico
Se a empresa não resolver o problema imediatamente ou se você já passou dias sem abastecimento, procure um advogado especializado em Direitos do Consumidor. Como visto na decisão judicial, além de obrigar a empresa a religar a água imediatamente (muitas vezes através de uma liminar), é possível buscar uma compensação financeira pelos transtornos vividos.
A importância de não se calar
Muitos consumidores deixam de buscar seus direitos acreditando que o processo é demorado ou que “não vale a pena”. No entanto, decisões como esta mostram que o Poder Judiciário está atento aos abusos cometidos pelas concessionárias.
A indenização, além de reparar o dano sofrido pelo indivíduo, tem um caráter pedagógico. Ela serve para desestimular a empresa a repetir a conduta negligente com outros clientes. Quando um consumidor exige seus direitos, ele contribui para a melhoria do serviço público como um todo.
O caso da consumidora de Parnamirim é um exemplo claro: mesmo após pagar o que devia, ela foi vítima de uma falha operacional grosseira. A Justiça corrigiu a distorção, garantindo que a dignidade do consumidor prevalecesse sobre a burocracia e a ineficiência da empresa.
Dados da decisão judicial
- Data da Decisão: 30 de outubro de 2025
- Comarca: 1ª Vara Cível da Comarca de Parnamirim (RN)
- Condenação: R$ 5.000,00 por danos morais
- Processo nº: 0808113-89.2024.8.20.5124