
A emoção de planejar uma viagem, a rapidez de clicar em “comprar” e a confirmação imediata no e-mail. A compra de passagens aéreas pela internet é um processo que combina conveniência e expectativa. Mas o que acontece quando, poucas horas depois, um imprevisto torna a viagem impossível? Para muitos consumidores, o sonho se transforma em um pesadelo burocrático, com companhias aéreas se recusando a devolver o valor pago. No entanto, uma recente decisão judicial reforça uma proteção fundamental: o reembolso de passagem comprada online e cancelada não é um favor, mas um direito garantido por lei. Este artigo explora essa decisão e detalha como você, consumidor, está protegido em situações semelhantes.
O impulso da compra e o balde de água fria: a realidade de um passageiro
Imagine um casal planejando uma viagem para Miami. Eles encontram uma boa oportunidade e, em poucos minutos, finalizam a compra das passagens no site da companhia aérea, um investimento de R$ 13.791,30. A alegria, contudo, dura pouco. Horas depois, ao organizar os documentos, eles percebem um detalhe crucial: o visto de um deles para os Estados Unidos estava vencido, inviabilizando completamente o embarque.
Agindo rapidamente, eles contataram a empresa aérea para solicitar o cancelamento e a devolução do dinheiro. A resposta da companhia, porém, foi desanimadora. Alegando regras tarifárias específicas, a empresa informou que o reembolso seria de apenas R$ 2.370,42. Isso significava que o casal perderia mais de R$ 11.400,00 — cerca de 83% do valor total — por um cancelamento solicitado poucas horas após a transação.
Este cenário expõe uma realidade comum e frustrante: a enorme assimetria de poder entre o consumidor individual e uma grande corporação. A retenção de uma quantia tão desproporcional não se assemelha a uma simples taxa administrativa; funciona como uma penalidade severa, que coloca todo o ônus do imprevisto sobre o passageiro. Foi exatamente essa prática, considerada abusiva, que levou o caso aos tribunais, onde a justiça restabeleceu o equilíbrio.
Reembolso de passagem comprada online e cancelada: o que diz a lei?
Quando uma companhia aérea nega a devolução integral de uma passagem comprada online e cancelada logo em seguida, ela frequentemente se apoia em suas próprias políticas internas, como o tipo de tarifa adquirida. Contudo, a legislação brasileira estabelece uma hierarquia clara, na qual os direitos do consumidor prevalecem sobre contratos de adesão e regulamentos privados.
O direito de arrependimento: sua principal ferramenta de proteção
A pedra angular da defesa do consumidor neste caso é o Artigo 49 do CDC. Este artigo consagra o direito de arrependimento, uma proteção específica para compras realizadas fora do estabelecimento comercial físico, como é o caso de transações pela internet, telefone ou catálogo.

A lei é inequívoca: a partir da data da compra, o consumidor tem um prazo de 7 dias para desistir do contrato, sem precisar apresentar qualquer justificativa. É um “prazo de reflexão”, que permite ao cliente reavaliar a aquisição com calma. Se o arrependimento for exercido dentro desse período, o consumidor tem direito ao reembolso integral e imediato de todos os valores pagos, com a devida correção monetária. Essa proteção existe justamente para equilibrar a relação de consumo em ambientes onde o cliente não tem contato direto com o produto ou serviço antes de fechar o negócio.
“Tarifa light” e proximidade do voo: as desculpas que a justiça não aceitou
No processo em questão, a companhia aérea utilizou dois argumentos centrais para justificar a recusa do reembolso total: primeiro, que a passagem era da modalidade “tarifa light”, que não permitiria devoluções; segundo, que o cancelamento ocorreu a menos de sete dias da data do voo. Muitos consumidores se sentem intimidados por termos como tarifa não reembolsável e acabam aceitando a perda financeira.
No entanto, a decisão judicial foi categórica ao desmontar essas justificativas. O juiz responsável pelo caso afirmou que o direito de arrependimento previsto no CDC se sobrepõe a qualquer política interna da empresa. Nas palavras da sentença, o direito ao reembolso integral se aplica “independentemente do tipo de ‘tarifa’ comercial atrelada às passagens ou de fato de elas se destinarem a viagem programada para menos de sete dias da data da compra”.
Isso revela uma estratégia corporativa comum: a criação de políticas internas complexas que, embora pareçam ter força de lei, são, na verdade, subordinadas à legislação de proteção ao consumidor. As companhias aéreas, com seus robustos departamentos jurídicos, sabem da existência e da aplicabilidade do Artigo 49 do CDC. A insistência em argumentos como “tarifa light” ou a proximidade do voo sugere um risco calculado: a aposta de que a maioria dos clientes desconhece seus direitos ou considerará o processo de contestação excessivamente oneroso e desgastante. A decisão judicial, portanto, não apenas corrige uma injustiça individual, mas também expõe essa prática sistêmica.
Para facilitar a compreensão, a tabela abaixo resume o confronto entre os argumentos da empresa e a realidade jurídica:
Argumento da Companhia Aérea | A Realidade Jurídica (Conforme a Decisão) |
A passagem era “tarifa light” e não dava direito a reembolso. | O Direito de Arrependimento (Art. 49, CDC) se sobrepõe a qualquer tipo de tarifa para compras online canceladas em até 7 dias. |
O cancelamento foi feito a menos de 7 dias do voo. | A lei não faz essa exigência. O prazo de 7 dias é para o consumidor desistir da compra, não importando a proximidade do voo. |
A decisão final: justiça garante reparação e cria precedente importante
O desfecho do processo foi uma vitória completa para os passageiros. O tribunal julgou o pedido procedente e condenou a companhia aérea a pagar uma indenização por danos materiais no valor exato da diferença retida: R$ 11.420,88, com juros e correção monetária.
Mais do que a reparação financeira, a fundamentação da sentença carrega um significado profundo. O juiz destacou que a recusa do reembolso integral colocaria os consumidores em uma “desvantagem exagerada”, uma prática vedada pelo Artigo 51 do CDC. Além disso, a decisão contém uma observação crucial: a possibilidade de arrependimento e cancelamento de bilhetes aéreos “integra o risco da atividade empresarial desenvolvida pela ré”.
Essa afirmação muda a perspectiva sobre quem deve arcar com os riscos do comércio eletrônico. Ao optar por vender seus serviços pela internet, um canal que amplia exponencialmente seu alcance e reduz custos operacionais, a empresa aérea inerentemente aceita o arcabouço legal que rege esse ambiente. Isso inclui, de forma inegociável, o direito de arrependimento do consumidor. A decisão protege os clientes de arcarem sozinhos com o ônus financeiro de imprevistos que ocorrem logo após uma transação digital, transferindo esse risco de negócio para quem lucra com ele: a própria empresa.
Negaram seu reembolso? Um guia prático de como agir
Se você se encontra em uma situação semelhante, saber como proceder é fundamental para garantir seus direitos. A seguir, um guia prático baseado nas lições do caso:

- Aja Rápido: O direito de arrependimento deve ser exercido no prazo de 7 dias corridos, contados a partir da data da compra do serviço. Não deixe para depois.
- Documente Tudo: Realize a solicitação de cancelamento por canais oficiais que gerem um registro por escrito, como e-mail ou o portal da própria companhia. Guarde todos os números de protocolo, e-mails trocados e capturas de tela que comprovem a data e a hora da sua solicitação.
- Seja Claro e Objetivo: Ao contatar a empresa, mencione explicitamente a lei. Você pode usar uma formulação simples e direta: “Com base no Artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, exerço meu direito de arrependimento e solicito o cancelamento da compra [informe o código da reserva] e o reembolso integral do valor pago.”
- Não Aceite Ofertas Parciais ou Créditos: A lei garante a devolução do valor em dinheiro. Você não é obrigado a aceitar créditos para uso futuro ou um reembolso parcial se o cancelamento foi feito dentro do prazo legal de 7 dias.
- Busque Suporte Jurídico Especializado: Se a companhia aérea negar o reembolso, não responder ou continuar a apresentar argumentos inválidos, o próximo passo é procurar um advogado especialista em direitos do passageiro aéreo. Um profissional com experiência na área saberá como formalizar a reclamação e, se necessário, ingressar com uma ação judicial para garantir que a lei seja cumprida de forma eficaz.
O conhecimento é o maior aliado do consumidor. Casos como este demonstram que, embora as práticas abusivas existam, a legislação brasileira oferece ferramentas robustas para combatê-las. Estar ciente dos seus direitos é o primeiro e mais importante passo para defendê-los.
Dados do processo
- Data da Decisão: 30 de julho de 2025
- Número do Processo: 1105197-78.2024.8.26.0100