Imagine a situação: você embarca para uma longa viagem internacional, prepara-se para descansar, mas, poucas horas após a decolagem, o piloto avisa que a aeronave precisará retornar ao aeroporto de origem devido a problemas mecânicos. O transtorno, o susto e a perda de compromissos gerados por esse tipo de evento são imensuráveis e desgastantes.
Recentemente, o Judiciário paulista analisou um caso exatamente com esse cenário, reafirmando que o consumidor tem direito a indenização por falha técnica em voo quando a prestação do serviço é defeituosa.
Neste artigo, vamos analisar em detalhes como a Justiça protege o passageiro quando a companhia aérea alega “manutenção não programada” para justificar atrasos e cancelamentos, utilizando um caso real recente como exemplo prático. Se você passou por algo semelhante, entenda agora a extensão dos seus direitos e como buscar reparação.
O caso: de Copenhague a Porto Alegre com escala frustrada
No caso em análise, um passageiro programou sua viagem de retorno ao Brasil saindo de Copenhague com destino a Porto Alegre, com conexões previstas em Amsterdã e Guarulhos.
Tudo parecia normal no primeiro trecho da viagem. Contudo, após decolar de Amsterdã com destino a São Paulo, cerca de duas horas após o início do voo, a tripulação anunciou uma falha técnica que exigia o retorno emergencial à Holanda.
Ao desembarcar novamente na origem, o consumidor foi informado de que sua viagem só poderia ocorrer no dia seguinte. Ele foi realocado em um novo itinerário operado por uma companhia parceira, a TAP, com destino a Lisboa, para de lá seguir para Porto Alegre.
Essa mudança drástica resultou em um atraso de voo de 22 horas em relação ao horário originalmente contratado para a chegada.
A defesa da companhia aérea, a KLM, sustentou em juízo que o adiamento foi estritamente necessário por questões de segurança, devido a uma manutenção não programada na aeronave. A empresa alegou que prestou a assistência necessária e que o evento fugia ao seu controle, tentando caracterizar o episódio como um imprevisto que não geraria dever de indenizar.
No entanto, a Justiça não aceitou essa justificativa para isentar a responsabilidade da transportadora.
Indenização por falha técnica em voo: a responsabilidade da companhia
Um dos pontos centrais para quem busca indenização por falha técnica em voo é compreender o conceito de responsabilidade objetiva previsto no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A decisão judicial destacou que a relação entre passageiro e companhia aérea é, indiscutivelmente, uma relação de consumo. Isso significa que a empresa responde pelos danos causados ao cliente independentemente de culpa.
A lei determina que a condenação da empresa somente pode ser afastada se ela provar que o defeito no serviço não existiu ou que a culpa foi exclusiva do consumidor ou de terceiros, o que não ocorreu neste caso específico.
O mito do “fortuito externo” em problemas mecânicos
É muito comum que as companhias aéreas aleguem que problemas técnicos são “imprevistos”, casos de força maior ou o chamado “fortuito externo” para evitar o pagamento de indenizações. Contudo, o entendimento consolidado nos tribunais brasileiros segue uma lógica diferente e protetiva ao consumidor.

Na sentença analisada, a magistrada foi clara ao afirmar que problemas mecânicos repentinos, embora indesejados, são considerados “fortuito interno”. Ou seja, a manutenção das aeronaves e eventuais falhas técnicas fazem parte do risco do negócio da aviação. A empresa aufere lucros com essa atividade complexa e, portanto, deve arcar com os riscos inerentes a ela.
O documento judicial ressalta que “eventuais problemas internos à companhia fazem parte do risco assumido pela prestadora de serviço”. Portanto, esses problemas não podem ser utilizados como escudo para deixar o passageiro desamparado.
Mesmo que a manutenção seja necessária para a segurança — o que é indiscutível e prioritário —, os direitos do passageiro aéreo permanecem intactos, e os danos decorrentes dessa falha na prestação do serviço devem ser reparados.
A importância da assistência material e o dever de informação
Além da questão da falha técnica em si, outro ponto crucial abordado na decisão foi a falha no dever de informação e na assistência ao passageiro durante a crise.
Segundo a Resolução 400 da ANAC, citada na decisão, quando há alterações de voo, atrasos ou cancelamento de voo, a companhia tem obrigações claras dependendo do tempo de espera do passageiro:
- Superior a 1 hora: Facilidades de comunicação (internet, telefonemas);
- Superior a 2 horas: Alimentação (voucher, lanche ou refeição);
- Superior a 4 horas: Serviço de hospedagem (em caso de pernoite) e traslado de ida e volta entre o aeroporto e o local de acomodação.
No caso relatado, embora a empresa tenha oferecido hospedagem e alimentação, a realocação imposta resultou na perda de compromissos importantes do passageiro e a comunicação foi falha. A decisão ressaltou que a empresa não comunicou o ocorrido com a devida antecedência e falhou em fornecer meios alternativos satisfatórios.
A lei determina que o transportador deve oferecer alternativas ao passageiro, como reacomodação em voo próprio ou de terceiro na primeira oportunidade, reembolso integral ou execução do serviço por outra modalidade. Quando essa escolha não é respeitada ou a assistência material é insuficiente para mitigar o sofrimento, o direito à reparação se fortalece.
O dano moral pelo atraso excessivo
Muitos consumidores se perguntam: “apenas o atraso gera dano moral?”. A resposta depende da gravidade da situação e do tempo de espera. Neste caso, o atraso foi de 22 horas, o que é extremamente significativo.
A sentença reconheceu que um lapso temporal dessa magnitude ultrapassa o limite do mero dissabor da vida em sociedade. O tempo perdido, o desgaste físico e emocional de ter um voo retornado após a decolagem, a espera no aeroporto e a incerteza sobre a nova viagem configuram danos morais.
O Juízo fixou a indenização com base nos critérios de proporcionalidade e razoabilidade. O objetivo dessa compensação financeira não é o enriquecimento do passageiro, mas sim compensar o sofrimento vivenciado e, pedagogicamente, punir a empresa para que melhore seus processos e serviços. No caso em questão, a empresa foi condenada a pagar R$ 3.000,00 ao consumidor a título de danos morais, além de arcar com as custas processuais.
Vale ressaltar que cada caso é único e os valores podem variar. Juízes analisam fatores como:
- A duração total do atraso (quanto maior, mais grave);
- A qualidade da assistência prestada (se o passageiro foi abandonado à própria sorte ou se teve suporte);
- As consequências pessoais (perda de conexões, reuniões de trabalho, eventos familiares);
- A vulnerabilidade dos passageiros (presença de crianças, idosos ou pessoas com deficiência).
Como agir em casos de falha técnica e atraso
Se você estiver em uma situação onde o piloto anuncia retorno por problemas técnicos ou o voo sequer decola por manutenção não programada, é fundamental manter a calma e reunir provas.

Siga estes passos para proteger seus direitos:
- Registre tudo: Tire fotos dos painéis do aeroporto informando o atraso, guarde os cartões de embarque originais e os novos fornecidos na reacomodação.
- Peça a declaração de contingência: Solicite ao balcão da companhia um documento por escrito explicando o motivo do atraso ou cancelamento.
- Exija seus direitos imediatos: Se o atraso superar as horas estipuladas pela ANAC, exija os vouchers de alimentação e hotel. Guarde todas as notas fiscais de gastos extras que tiver (táxi, comida, itens de higiene) caso a empresa não forneça os vouchers.
- Não assine acordos precipitados: Muitas vezes, companhias oferecem créditos ou milhas de valor baixo em troca da renúncia de seus direitos de processar. Analise com calma antes de aceitar qualquer oferta no balcão.
- Procure ajuda especializada: Se a solução oferecida pela empresa não for satisfatória, ou se você sofreu prejuízos morais e financeiros, a orientação de um advogado especialista é recomendávelpara buscar a reparação integral.
Conclusão
A decisão judicial analisada neste artigo reforça que a segurança de voo é prioridade absoluta, mas isso não exime as companhias aéreas de suas responsabilidades perante o consumidor quando falhas ocorrem. Problemas mecânicos são riscos inerentes à atividade de transporte aéreo e não podem ser transferidos para o passageiro na forma de prejuízos e transtornos não reparados.
Se você enfrentou um atraso significativo decorrente de problemas técnicos na aeronave, saiba que a legislação brasileira é robusta e está do seu lado. O Código de Defesa do Consumidor e as resoluções da ANAC garantem que você seja assistido e, quando cabível, indenizado pelos danos sofridos.
Não deixe que o desgaste da viagem o impeça de buscar o que é justo. A orientação jurídica adequada é o caminho mais seguro para transformar o transtorno vivido em respeito aos seus direitos.
Dados da decisão analisada
- Data da decisão: 21 de outubro de 2025
- Número do processo: 1058403-62.2025.8.26.0100
- Juízo: 19ª Vara Cível do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo