No final do ano passado, a cantora Marília Mendonça sofreu um acidente de avião, em que todos os passageiros faleceram. Esse foi um acidente emblemático para o país, dada a fama da artista, e entrou para as estatísticas do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), que divulgou que entre 2011 e 2021, ocorreram 1825 acidentes aéreos no Brasil.
A investigação realizada pelo órgão mostrou que os fatores operacionais geram a maior parte dos acidentes, representando 63% do número total. Em seguida, vêm as ocorrências causadas por fatores humanos, que somam 35% dos casos.
Segundo o levantamento, as principais ocorrências durante esse período foram:
- falhas de motor (19,8% dos acidentes);
- perda de controle em voo (18,8% dos acidentes);
- perda de controle no solo (12,1% dos acidentes);
- colisão com obstáculo durante o voo (6,9% dos acidentes).
Outros dados do Cenipa mostram que somente 25% dos acidentes aéreos no Brasil acarretaram mortes. No entanto, essa é somente uma das possíveis consequências dessas ocorrências.
Após os incidentes, familiares de vítimas e sobreviventes costumam recorrer ao Poder Judiciário em busca de reparação pelos danos sofridos.
Esses casos vêm sendo julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde 1990 e, durante esses 23 anos, diversas decisões foram tomadas, solidificando o entendimento da Justiça sobre os direitos das partes envolvidas em acidentes aéreos.
Conheça a jurisprudência do STJ sobre acidentes aéreos e entenda sua aplicação em casos reais!
O que é jurisprudência?
Quando diversos casos sobre um mesmo assunto são julgados pelos tribunais resultando em decisões convergentes, podemos dizer que neste caso é formada uma “jurisprudência“. Basicamente, é uma orientação dos Tribunais Superiores para que os juízes das instâncias inferiores ou, até mesmo, da mesma instância possam julgar os futuros casos com base em entendimentos já discutidos e consolidados.
Essa interpretação firma um entendimento, que deve ser utilizado como parâmetro em julgamentos futuros envolvendo um mesmo assunto.
O que pode ser considerado acidente aéreo?
Segundo a definição da Convenção Internacional de Aviação Civil (Convenção de Chicago), pode ser considerado um acidente aéreo todo evento associado à operação de uma aeronave, durante o momento de embarque do primeiro passageiro e desembarque do último, em que uma ou mais pessoas são gravemente feridas ou morrem.
No entanto, também existe outra definição aceita, que também classifica ocorrências que envolvem falhas ou danos na estrutura do avião, desaparecimento da aeronave ou perda de acessibilidade à mesma como acidentes aéreos.
Quem deve ser responsabilizado?
Em um dos acidentes aéreos julgados pela 2ª Turma do STJ, em julho de 2006, foi discutida a responsabilidade em caso de uso indevido da aeronave. Na ocorrência, o avião foi cedido a um aeroclube privado gratuitamente, para treinamento de pilotos.
No caso específico, o aeroclube tinha assinado um termo de cessão de uso da aeronave em que concordava em assumir a responsabilidade pelos riscos e danos originados pelo uso do bem.
Por isso, o colegiado e o relator, ministro João Otávio de Noronha, entenderam que a responsabilidade civil seria do explorador da aeronave e que, por isso, a União não responde por danos resultantes de acidentes aéreos em caso de uso indevido de aeronave.
Então, o piloto e o copiloto são responsáveis em casos de acidentes aéreos?
Em 2006, um Boeing da Gol atingiu um jato Legacy e caiu, causando a morte dos 154 passageiros e tripulantes. Para se apurar a responsabilidade dos tripulantes num acidente aéreo, deverá ser provada a responsabilidade civil dos mesmos, comprovando-se a imprudência, negligência ou imperícia na condução da aeronave. A absolvição dos dois controladores de voo que trabalhavam no dia do acidente foi avaliada pela 5ª Turma.
Ambos os funcionários foram acusados de negligência, porém, foram absolvidos por decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que foi mantida pelos ministros, acompanhando o entendimento da relatora, ministra Lauriza Vaz.
Isso porque, segundo o STJ, seria necessário reexaminar as provas no recurso apresentado pelo Ministério Público Federal, o que é vedado em caso de recurso especial apresentado ao Superior Tribunal de Justiça.
As provas levaram a Justiça Federal de primeira e segunda instâncias a concluirem que os controladores não foram negligentes, e sim que eles receberam a informação errada de que o Legacy mantinha seu nível de voo, quando, na verdade, estava no nível do avião da Gol.
As vítimas podem pedir indenização?
Certamente que sim, quando o evento decorrer de falha da companhia aérea e/ou do condutor da aeronave! Aliás, as vítimas de acidentes aéreos são consumidores de um serviço, que deve ser prestado conforme o esperado, havendo inclusive aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos casos que envolvem uma relação entre passageiro e companhia aérea. A integridade e a vida dos viajantes deve ser uma prioridade e, quando lesados, há o dever de reparar os danos causados.
Acidentes aéreos podem causar diversos prejuízos ao consumidor como, por exemplo:
- perdas financeiras;
- sequelas emocionais;
- sequelas físicas;
- traumas;
- óbito.
Todos esses danos devem ser devidamente avaliados no curso de um processo judicial para efetivamente se saber o montante da indenização a ser paga num acidente aéreo.
Qual o prazo para ajuizar a ação nesse caso?
De acordo com o entendimento pacificado pela 3ª do STJ, o prazo prescricional para a pretensão de ressarcimento dos danos oriundos de acidentes aéreos, em casos que envolvem uma relação de consumo, é de 5 anos, conforme definido pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Segundo a relatora, ministra Nancy Andrighi, no caso julgado, o prazo prescricional “não pode ser resolvido pela simples aplicação das regras tradicionais da anterioridade ou da hierarquia, que levam à exclusão de uma norma pela outra; mas sim pela aplicação coordenada das leis, pela interpretação integrativa, de forma a definir o verdadeiro alcance de cada uma delas, à luz do concreto”.
Por isso, segundo a ministra, apesar de existir um prazo de prescrição já estabelecido pelo Código Brasileiro de Aeronáutica, que é de 2 anos, nada impede a incidência do CDC quando for demonstrada a relação de consumo entre o transportador e as vítimas.
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Sequelas decorrentes do acidente são passíveis de reparação?
Em fevereiro de 1990, um Fokker MK-60 da TAM (atual LATAM) se chocou com um veículo na rua ao perder o controle na manobra de aterrissagem em Bauru. Em 1994, uma vítima apresentou sequelas decorrentes do incidente, ajuizando uma ação contra a empresa no ano seguinte (1995).
O passageiro sofreu grave lesão na medula na aterrissagem da aeronave, que pousou em cima de um carro. Ele passou por uma cirurgia após o acidente e ficou em recuperação durante um ano, recebendo alta em 1991.
No entanto, no final do mesmo ano, o consumidor começou a perceber as sequelas do acidente, confirmando sua suspeita em 1994, através de exames e laudos médicos.
Além de não poder praticar esportes, a capacidade de trabalho da vítima foi parcialmente comprometida. Por isso, a 4ª Turma do STJ condenou a empresa a indenizá-lo já que acidentes desta natureza causam, além de prejuízos materiais com o tratamento para a recuperação, valores que devem ser estimados como a perda da capacidade laborativa e danos morais que necessariamente merecem a reparação.
Qual o prazo para ajuizar a ação nesse tipo de caso?
Diante da ação acima citada, a TAM defendeu a adoção do prazo prescricional de dois ou três anos, previsto no Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA). No entanto, o ministro e relator do caso, Raul Araújo, ressaltou que a data inicial da prescrição começa a contar quando a vítima descobre as sequelas.
Visto que as sequelas só foram confirmadas anos após o acidente, a utilização do CBA ou do CDC não influiriam na ocorrência da prescrição, já que a ação foi ajuizada imediatamente após o descobrimento das sequelas, o que excluiu a possibilidade de prescrição neste caso .
Ademais, segundo o ministro, deve ser considerado que de acordo com diversos precedentes do STJ, deve-se aplicado o prazo do CDC, quando conflitante com outra norma que represente retrocesso aos direitos dos consumidores.
Familiares de falecidos têm direito à indenização?
Em outras demandas relacionadas ao caso Gol, de 2006, familiares de vítimas foram à Justiça em busca de reparação financeira pelas suas perdas.
Em um dos casos, a 4ª Turma do STJ condenou a empresa a pagar R$ 120 mil pelos danos morais à irmã de uma das vítimas.
A Gol alegou que a irmã não deveria ser indenizada, pois outros parentes mais próximos à vítima já teriam sido compensados.
No entanto, segundo o entendimento dos ministros e do relator, Luís Felipe Salomão, a jurisprudência do STJ permite que irmãos da vítima peçam indenização por danos morais em caso de morte.
Isso porque a 3ª Turma também confirmou a possibilidade de irmãos das vítimas de acidentes aéreos serem indenizados, mesmo quando os pais, viúvos ou filhos do falecido já fecharam um acordo.
Para os ministros, a indenização não é sucessória, mas obrigacional. Por isso, todos os atingidos pela perda de uma pessoa podem recorrer à Justiça, e não apenas seus ascendentes, descendentes e cônjuges.
Qual o prazo para que os familiares possam ajuizar a ação nesse caso?
Em outro caso julgado pela 4ª Turma, a família de um piloto de helicóptero que faleceu durante o trabalho entrou com o pedido de indenização 35 anos após o acidente.
No caso em questão, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro extinguiu a ação, porque o Código Brasileiro de Ar (atual Código Brasileiro de Aeronáutica), estabelecia o prazo prescricional de 2 anos para a solicitação da reparação em caso de acidentes aéreos.
No entanto, no Recurso Especial impetrado junto ao STJ, os familiares conseguiram afastar o prazo prescricional.
O relator do caso, ministro Fernando Gonçalves, entendeu que o prazo incidia somente sobre ações decorrentes de danos causados a passageiros, bagagem ou carga transportada, sem mencionar danos ao piloto.
Visto que não existia prazo específico para a situação do piloto, os ministros aplicaram a prescrição de 20 anos prevista no Código Civil (CC).
Somente as vítimas que estavam no avião devem ser indenizadas?
Em 1996, um avião Fokker 100 da empresa TAM (atual LATAM) caiu em uma rua da zona sul da cidade de São Paulo.
O acidente levou uma mulher que residia em rua próxima ao local da queda a procurar a Justiça em busca de reparação. Na ação, ela alegou que ficou psicologicamente abalada com destruição da vizinhança e o fato de ter visto corpos carbonizados.
O ministro e relator do caso, Luis Felipe Salomão, entendeu que a autora foi prejudicada pela situação, podendo ser considerada consumidora por equiparação.
No julgamento, Salomão destacou a expressão “todas as vítimas do evento”, que consta do artigo 17 do CDC para justificar a relação de consumo, explicando que a autora foi afetada mesmo sem ter adquirido o serviço diretamente.
Qual o prazo para que um terceiro prejudicado num acidente aéreo possa ajuizar a ação ?
A ação em questão foi ajuizada apenas em maio de 2003, quase 7 anos após o evento.
Por isso, em primeira instância, a TAM foi favorecida, pois foi aplicado o prazo prescricional de 2 anos previsto no CBA. Além disso, o juiz reforçou que a ação também estaria prescrita se fosse aplicado o prazo do CDC.
Já o Tribunal de Justiça de São Paulo, aplicou o prazo prescricional de 20 anos, previsto pelo CC.
No entanto, ao analisar recurso contra a decisão do TJ-SP, a 4ª Turma entendeu que o prazo prescricional para pedir a indenização por danos decorrentes de acidentes aéreos é de 5 anos conforme o CDC.
Isso porque, segundo os ministros, a regra do CDC seria ajustada à ordem constitucional.
Confira aqui os julgamentos citados no artigo:
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